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Essa cultura imensa que nos une

pintura Amelia PelaezÉ frequente, quando se pensa na Cultura Cubana, que lembremos o que foi ela nos tempos da cruenta formação do ser e da consciência identificativa, durante o século 19, com seus símbolos e manifestações de afirmação coletiva. Também, às vezes, costuma ser reduzida a um sistema de evidências que refletem ou recriam, de modo reconhecível, elementos da flora ou da fauna do nosso arquipélago, a paisagem rural, sinais da luta pela independência, ou o distintivo do homem crioulo visto a partir de seus indicadores fisionômicos, psicológicos e mito-genésicos mais comuns. Também não faltam aqueles que a percebem como um «jogo de postais» hedonistas estereotipadas, confundem-na com modalidades do atraso que se arrastra em determinadas mentalidades ou costumes; ou a apresentam unicamente como o conjunto de personalidades, criações e obras – originais ou reproduzidas – da literatura, o pensamento filosófico e as artes.

Entender por manifestações culturais exclusivamente aquelas que deleitam a percepção sensorial culta e inculta, entretêm, catalisam a necessidade de movimentos e erotismo do corpo, ou constituem adornos de maior ou menor complexidade e preço, não é outra coisa que obviar o básico da cultura: sua condição de memória ativa e emissão do desenvolvimento humano em escala de país e em sua inter-relação mundial. O cultural legítimo implica plenitude do homem mesmo e ao mesmo tempo expressão de tudo aquilo quanto entesoura na subjetividade ou contribui para a sua cabal melhoria. Daí que a invenção artesanal e técnica, os instrumentos e mobília de variada utilidade, as edificações e ordenamentos do campo visual urbano, o senso cotidiano da existência e as formas de se comunicar, os usos gastronômicos e curativos, a denominada «arte culinária», e certas modalidades do prazer, bem como as tradições domésticas e a educação dos sentidos, sejam partícipes do tecido de formas e canais culturais. Também não é possível excluir da cultura a ética e as ciências, nem os nexos comunitários do sujeito e a consciência sanitária, a boa publicidade e o jornalismo, a conversação e o livro, a sensibilidade traduzida em gestos e os momentos de introspecção; além de alguns rituais religiosos e o design em suas diversas objetivações.

Falar do «universo cultural» implica designar uma amalgama de referentes e «coisas», além de campos ambientais e íntimos do sujeito, que não se podem fragmentar nos perfis assistêmicos de certas instituições, associações e ministérios. É por isso que na fase de fundação do ministério da Cultura o patamar mais ato da liderança estatal determinou que este devia ser a entidade reitora na diversidade do proceder cultural de toda a Sociedade e o Estado. Dessa forma, conformar pessoas e espaços cultos não seria tarefa exclusiva de atividades profissionais ou amadoras (estéticas e antropológicas), mas sim missão de alcance maior, que articule os diferentes setores do país em programas necessários para aplicar – em nosso contexto – a ideia exposta por Karl Marx quando assinalou que «se as circunstâncias formam o homem, torna-se necessário então humanizar as circunstâncias».

Um sujeito culto deve ser integral em sua cultura, evoluindo nos sentimentos, e com princípios sólidos em bem dos seus conterrâneos e da humanidade. A universalidade da cultura exige transcender certa identificação construtiva no âmbito onde a gente se desenvolve, para se preocupar pelo destino do gênero humano. Esse quase heroico trabalho despregado em vários recantos da geografia global, por parte de brigadas de médicos e enfermeiros cubanos, foi um genuíno ato de cultura, salvando ao mesmo tempo portadores tradicionais, pessoal com ascendência tribal, e pessoas diversas que são participantes e executores da paisagem contemporânea, desenhada segundo padrões da imaginação. Negar o merecido Prêmio Nobel da Paz a tais missionários da Saúde, seria uma decisão anticultural; pois preservar vidas humanas opera, a fim de contas, dentro do rosto multiforme do humanismo implícito na cultura universal, manifesto por realizações científicas, benfeitoras, estéticas, ambientalistas, reveladoras de verdades e dignificadoras do comportamento pessoal.

Existe uma indubitável interação da personalidade do cubano com sua cultura, que se refaz por conduto de cada geração. Daí que negar o cultural autêntico possa provocar a dissolução da personalidade nacional em códigos e comportamentos geralmente carregados por axiologias e ideias neocolonizadoras. Globalizar-se através de padrões do snob, segundo posições subalternas a respeito do Capital Cultural Transnacional, em função de interesses de mercado e afã de transcender o subdesenvolvimento, mas abrindo mão da substância autóctone, não é o mesmo que se projetar para o internacional a partir das fontes nativas e as circunstâncias vividas. Uma relação de troca com outras culturas do mundo, e não a dependência servil a modelos importados foi o que nutriu a Arte Moderna e Tardo-Moderna de nomes muito valiosos da Nossa América, ao ponto de colocar suas obras em preços muito elevados de leiloes marcados pelas qualidades e as contribuições genuínas das peças leiloadas.

Agir de acordo com altos valores éticos e patrióticos, a partir de uma nacionalidade imantada por profunda universalidade, implicará sempre opor-se às «miragens de superioridade» envolvidas em propostas sedutoras, e às sucções de nossa espiritualidade criativa por ambições de um mercado desnacionalizador. Estar à espreita de armadilhas que podem usar convenções, entidades, espetáculos e procedimentos nossos de valorização e promoção, contra o desdobramento da consciência cultural autóctone, foi uma das razões daquela certeza de «mudar as regras do jogo», expressa, mais de uma, vez por Armando Hart.

Diariamente, fixamos nossa impronta no tecido cultural de Cuba, e este nos marca e condiciona em diversos sentidos. Nossa cultura nos serve de registro, e ao mesmo tempo funciona como espelho para reconhecermo-nos, avaliarmo-nos e sabermos como operar com os instrumentos, recursos sintáticos, métodos de criação e estratégias de significação que nos oferecem tendências, grupos e países que agem dentro de culturas internacionalizadas. Uma atitude culta consiste em alimentar-nos de tudo aquilo enriquecedor e renovador que nos é oferecido, sem fazê-lo com mimética docilidade. Caso tomarmos como exemplo um componente da cultura artística, as Artes Visuais, devemos entender que é tão simples e pouco criativo reproduzir fielmente as aparências externas da realidade — o que se fez no pós-academicismo e se impôs no mais ortodoxo Realismo Socialista — como copiar maneiras de fazer de artistas de fora bem-sucedidos, repetir operatórias recicladas de recontextualização estética e Arte Não-objetual, o lançar mão de estilos aceitos pela recepção comercial atualmente em auge, para assim garantir as vendas. O que parece ser liberdade de escolher paradigmas alheios que nos abram o passo em termos de negócios, em muitas ocasiões é a maneira de viver satisfeito nessa «gaiola invisível» mencionada por Che Guevara.

Aquela concepção gramcsiana que influiu nas ideias reitoras do Congresso Cultural de Havana, de 1968, ignorado por muitos — onde eu pude perceber que a cultura não se limitou a expressões literárias e artísticas, ou à conservação de patrimônios tangíveis e intangíveis — eu já a tinha recebido antes, como algo natural, dentro do tecido cotidiano de minha vida inicial em Manzanillo. A noção teórica de «intelectuais orgânicos», manifesta na prática pelo Grupo Literário dessa cidade e sua revista Orto (que incluiu profissionais de vários tipos), e igualmente esse entendimento do cultural como cultura e exteriorização do humano diverso, foram conceitos vitais na base da minha vocação e o apego a valores essenciais da Nação. Alimentada por essa «sinfônica» natureza dos processos culturais populares, em 1963 estabelecemos em uma edificação da cidade de Manzanillo, a primeira Casa da Cultura de Cuba, que era só um dos marcos de um enorme panorama de gestação cultural para toda a nação, aberto nessa década revolucionária de sonhos e batalhas. Nunca deixarei de agradecer a todos aqueles que abriram os olhos, a partir da infância e a adolescência, para apreciar o leque de ocupações e atos criativos que sobrevivem na cultura, compreender o indispensável do trabalho cultural com assessorias multidisciplinares — integradas por diversas esferas da realidade material e espiritual — e, ao mesmo tempo, sentir que toda renovação e descobrimento verdadeiro, na arte, vem de dentro de cada um de nós, como um prodigioso golpe de sangue.

(Fonte: Granma)

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