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Se eu voltasse a viver seria cubano

Eusebio LealA 27ª Feira Internacional do Livro será dedicada ao historiador de Havana. A celebração, que acontecerá em poucos dias, é a razão pela qual eu deveria agradecer poder conversar nesta ocasião com o doutor Eusebio Leal Spengler, o orgulho de Cuba e de todos aqueles que sentem e sofrem por esta Ilha e que acompanham suas ações.

Escutar ele é uma recompensa. Às vezes, quem faz as perguntas, fica estonteado e absorvido pela harmonia que ganham o conhecimento, a elegância e o ardor do verbo de alguém que, sendo tão conhecido, renasce em cada resposta.

Embora eu não lhe dissesse isso, Leal, o Historiador, ou simplesmente Eusebio — a julgar pela proximidade com que todos os seus seguidores o sentimos — é uma sorte de referência com o gigante Rubén Martínez Villena, aquele que não estava onde não havia nada grande para fazer e que, possuído por «uma força concentrada, irritada e expectante», sentia nas profundezas silenciosas do seu interior um impulso imparável de «dominar montanhas e reunir estrelas!».

Não teria aceitado isso. Eusebio Leal é um homem plano e sincero, que pode corar com um elogio. Tão modesto que a surpresa o abalou, quando recebeu a notícia sobre a homenagem que lhe fariam na Feira. Mas basta pensar por um momento em Havana, em seu Centro Histórico e nas transformações incríveis que sofreu, com o coração do seu historiador na vanguarda, para nos convencer de que o trabalho realizado, sob seus conselhos e direção permanentes, é colossal.

Entre as lembranças mais valiosas associadas aos livros que este homem singular conserva, está sua primeira professora, a que lhe ensinou a cartilha, as primeiras letras. Pode ser vista a sua emoção quando a evoca na pequena aula onde aprendiam as crianças, sentadas em bancos de madeira. «Ela era uma senhora muito idosa. Uma das recordações mais fortes da minha memória é o dia da morte da professora».

Todos os leitores temos livros que um dia queremos ler novamente. Qual é o seu? Que livro teria levado para uma ilha deserta?

«Eu já li duas vezes, Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, entre as mais recentes. E depois Bomarzo, de Manuel Mujica Láinez. Eu levaria a Bíblia para essa tal ilha».

O senhor chegou sozinho à leitura ou houve algum impulso?

«Eu descobri a biblioteca das crianças onde minha mãe trabalhava, em uma casa nas ruas San Lazaro e N. Um dia entrei na sala onde estavam todos os livros que eles tinham. Os livros se amontoavam até o teto, havia vários armários, todas as histórias, com imagens. Pouco depois, já na escola, eu podia ir caminhando até a Sociedade Econômica de Amigos do País. Em sua biblioteca infantil ganhei meu cartão de registro e os lia na minha casa, até que pude começar a comprá-los».

A que horas o senhor prefere ler?

«Posso estudar durante o dia, mas ler, por prazer, geralmente o faço deitado, o que é terrível, com uma lâmpada com pouca luz, que é cansativa; mas é a única chance que eu tenho, às vezes, para fazê-lo. Antigamente, lia no ônibus, no momento do triunfo da Revolução, com a avidez do conhecimento. Nós homens nos levantávamos quando uma senhora ou um deficiente subiam ao ônibus. Normalmente, nunca havia assentos para nós. Os homens levantavam-se automaticamente dos assentos e aquele que não o fazia era um mal-nascido. No ônibus eu lia Robinson Crusoe, Moby Dick… Eu li de tudo nos ônibus. Em todo lugar eu podia ler, li muito. Penso que hoje aproveito tudo aquilo que li naqueles tempos».

O que lhe deu, do ponto de vista do amor aos livros, uma amizade como a que o senhor teve com Dulce María Loynaz?

«Muito, porque ela foi perdendo a visão ao longo do tempo, até que ficou totalmente cega, e sempre me disse que a questão não era apenas ler, mas escutar a leitura, com essa voz interior que sempre nos acompanha. «’Quando já a pessoa não vê, uma vez que teve visão, há uma luz interior que nos permite lembrar coisas e pensar, pensar…’», dizia ela. O livro e a leitura nos fazem pensar a tal ponto que, segundo os rumores, ela disse, já em agonia: ‘que horror, estou morrendo e ainda penso’».

Em várias ocasiões, quando o senhor foi distinguido com algum prêmio ou reconhecimento, eu o escutei falar sobre os professores… Por que?

«Porque não há trabalho mais belo no mundo do que ensinar outros, o que acontece é que não há guia para os cegos. Para poder guiar é preciso ver, e para poder dar é preciso ter. Porque ninguém dá o que não tem».

José Martí falou sobre como as características do personagem adulto podem ser vistas da infância. Quais características existem no homem maduro que já estavam esboçadas na criança que ele foi?

«Eu preferia falar antes que escrever. Alguns assuntos me interessaram mais do que outros, por exemplo: as ciências naturais, a geografia, a história, e eu gostava de desenvolvê-los. Minha mãe me contou que quando eu estava na casa, no lugar onde moramos, na rua Hospital 660, no último andar, eles colocavam uma caixa de maçãs ou uma caixa de peras, eu subia nela e dali proferia discursos sobre o que eu estava aprendendo na escola, na primeira ou segunda séries».

O senhor não é um escritor propriamente dito, no entanto, existem muitos livros da sua autoria. Neles principalmente colhem-se discursos e ensaios. Qual o papel que o senhor dá ao discurso público no desenvolvimento de uma sociedade?

«A oratória parece-me muito bem porque a palavra tem um caráter persuasivo. A palavra, quando tem uma coerência, quando surge como uma nascente de uma rocha, quando sai do coração do indivíduo como a água da terra, tem um valor persuasivo, educativo, docente e pedagógico. Mas também é um prazer, que é uma das coisas que distingue o homem das outras criaturas. É precisamente o dom da palavra coerente o que lhe permite fazer filosofia, literatura…».

Tal como acontece também com o discurso de José Marti, o senhor exerce a oratória de uma forma bastante única. Qual o valor da fala oral, ao contrário da leitura de qualquer tratado?

«Não desqualifico ninguém, todos têm seu estilo. Há aqueles que leem o que escreveram e me parece muito bom para mim, eu faria isso e seria um pouco mais confortável e menos arriscado, porque a improvisação sempre tem riscos. Às vezes, você pode deixar-se levar por sentimentos íntimos ou por um estado deprimido, mas acho que nada pode substituir o valor abrangente e persuasivo da palavra, e me parece muito bom quando se pode dirigir às pessoas, conversar com elas, olhar para os olhos, conhecer os diferentes grupos de interesse que estão reunidos e saber como se referir a cada comunidade humana».

Qual é o estado que o senhor sente na efervescência oral? Alguma vez já teve medo no palco?

«Isso é todo o dia. Não há nada mais aterrador do que falar a uma grande audiência. Há momentos de uma grande tribulação, dias que correm bem e dias que não. O que você não pode fazer é falar por falar. Sempre a palavra tem que ter um conteúdo. E mais quando tem um conteúdo político (quer dizer, culto). A política à margem da cultura é um exercício inútil. Tem que ter um valor cultural — e a cultura é cultivar — é a parábola do plantador. Quando alguém fala, está jogando uma semente que irá florescer ou não, será vista ou não, mas essa é a missão do professor, daquele que fala, daquele que tenta persuadir, unir, prodigalizar com a palavra certo sentimento».

A cidade precisa de quem a louve, além de ações, com palavras. O senhor fez isso de ambos os modos… Será que está satisfeito com o que alcançou?

«Qualquer que seja a cidade, não me importa qual é. Para mim, a cidade é cada pessoa no espaço em que nasceu. Às vezes, a cidade é um povoado pequeno que por isso não deixa de ser bonito. Toda comparação parece abominável para mim. Hoje, mais do que nunca esta cidade, Havana, precisa de cantores, porque estamos prestes a comemorar o seu 500º aniversário e ninguém fala sobre isso».

Para muitos, o senhor é o namorado de Havana, quais são os princípios em que esse amor se baseia?

«Havana não pode ter namorados velhos. Ela sempre deve ter jovens namorados. Ela tem uma dignidade, um sentimento… Sou mais um dessa multidão que cantou para ela, que homenageou uma cidade verdadeiramente maravilhosa e única. Já conheci muitas cidades e — posso te assegurar — louvo elas todas, são maravilhosas; mas é que Havana é muitas cidades em uma; são muitas coisas em um, são seus bairros… É uma cidade imaginativa e criativa… também suas pessoas. É um verdadeiro desastre que se esteja ‘arrabaldizando’, que se venha a impor a necessidade e que não possa ser conduzida a aspiração de melhorar, levando em conta a beleza».

Que parte de Havana lhe dói? Qual delas elogia?

«Acabei de completar 50 anos de trabalho, dos quais dediquei 25, sozinhos, dentro das prioridades, a tentar preservar o sorriso de Havana que é o Malecón (muro da avenida beira-mar). Fiquei magoado pelo fato de que o mar, que eu amo tanto, danificasse irreversivelmente o muro do Malecón e que eu tenho que enxergar a demolição de edifícios no Malecón, pelos quais lutei tanto. O que mais me machucou foi a necessidade de mover o monumento do major-general Calixto García. Nunca imaginei isso. Mas, como sei que o mar voltará, qualquer tentativa de restaurá-lo pela quarta vez teria sido inútil. A única coisa que me satisfaz é que, dentro de algumas semanas, o trabalho começará no novo local e será tão bonito, tão lindo, tão bonito… mesmo que não esteja necessariamente perto do mar».

Qual privilégio tem uma cidade com mar?

«Somos uma ilha. A ilha que é um navio. Dulce Maria falava de que os conquistadores, os viajantes europeus, chamaram o continente de terra firme, e o menos firme é a ilha. Precisamos do mar, temos um diálogo com o mar. Em Havana, em Santiago, em Cienfuegos, repete-se um pouco, todos os dias, o que aconteceu em Veneza, quando o logo, o ex-governante daquela república, partia no Bucintoro — que se chamava assim seu maravilhoso navio — removia o anel e o jogava na água, em um ritual que significava o casamento perpétuo entre a Veneza e o mar. Nós, todos os dias, reiteramos esse vínculo com o mar».

Nas opiniões que os leitores enviam ao site do nosso jornal, quando aparece alguma informação do senhor em nossas páginas, pode ver-se o profundo carinho para sua pessoa. O que o senhor experimenta quando sabe que tem sido útil, que é tão amado?

«É bom. Martí disse que os homens vão em dois bandos: aqueles que amam e constroem e aqueles que odeiam e desfazem. Eu sempre quis estar entre os primeiros».

Eusebio Leal é alguém que deixa a um lado sua vida pessoal para cumprir o dever com Cuba?

«Eu acho que sim. Quando, por razões estritamente cronológicas, a gente está muito perto do fim se pergunta o que gostaria de ser, o que escolheria, se ele voltasse a viver. Se eu vivesse novamente, seria cubano».

Em termos de privacidade, Eusebio é um livro aberto?

«Às vezes, muito aberto».

Que incomoda poderosamente a Eusebio Leal?

«A fofoquice».

O que o agrada completamente?

«A contemplação da beleza».

O que é um dia feriado para Eusebio?

«No dia em que eu posso tirar meu terno cinza e usar o azul, como hoje».

O que o senhor faz com as más lembranças, as que o machucam?

«Elas se tornam experiências encarnadas».

Além do cubano, se nascesse de novo, o que mais seria?

«Muito jovem».

Dizem que com esta notícia da Feira, o senhor ficou como uma criança com um brinquedo novo… Isso é assim?

«Não me sinto como uma criança… nem como se tivesse um brinquedo novo. Pelo contrário, tenho medo da Feira, especialmente porque não posso cumprir o meu dever de ir a todos os lugares em Cuba. Fiquei muito surpreso com essa dedicação, que geralmente está ligada ao Prêmio das Ciências Sociais que eles tiveram a gentileza e a bondade de me conceder. Surpresa e gratidão sim. Eu expressei esse sentimento a Juanito, o presidente do Instituto Cubano do Livro, mas estou aterrorizado».

Ordem da amizade para Eusebio Leal

• EM 17 de janeiro na embaixada da Rússia em Cuba, foi condecorado com a Ordem da Amizade, outorgada pelo presidente russo Vladimir Putin, o doutor Eusebio Leal Spengler, Historiador de Havana.

«O doutor Leal constitui um dos intelectuais mais importantes da Revolução Cubana, credor de um sólido prestígio no âmbito acadêmico e social, conquistado à força de talento, sabedoria e sensibilidade», expressou Mikhail L. Kaminyn, embaixador russo na Ilha.

«Eusebio possui uma trajetória, dentro e fora da Ilha que fez dele, do seu pensamento e trabalho, uma presença insubstituível a partir da segunda metade do século XX e até a atualidade», precisou. «Ainda, é credor de incontáveis prêmios, reconhecimentos e condecorações nacionais e estrangeiras», acrescentou.

(Granma)

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